Menino Miguel Otávio, de apenas cinco anos, morreu ao cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife. Ele foi colocado sozinho no elevador pela então patroa de sua mãe, Sari Corte Real (Foto: Montagem)
Você lembra do caso Miguel? Em junho de 2020, no auge da pandemia, o menino Miguel Otávio, de apenas cinco anos, morreu ao cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife. Ele foi colocado sozinho no elevador pela então patroa de sua mãe, Sari Corte Real, para sair à procura da mãe, enquanto Mirtes Renata Santana passeava com o cachorro da família, cumprindo uma ordem de trabalho. A cena foi registrada pelas câmeras de segurança do edifício e chocou o país.
Nesta terça-feira (10), quase cinco anos após a tragédia, Mirtes apresentou seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Direito. O tema: escravidão moderna. A escolha não é por acaso. A dor da perda se converteu em luta e estudo, mas o processo que deveria trazer algum senso de justiça caminha a passos lentos e seletivos.
A tragédia também teve um impacto legislativo. A Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou a Lei Miguel, norma que proíbe que crianças de até 12 anos utilizem elevadores desacompanhadas de adultos. Foi preciso uma lei para estabelecer o óbvio.
Durante esses cinco anos, Mirtes mergulhou nos livros e nos tribunais. Descobriu, como tantos brasileiros, que a Justiça é muitas vezes uma engrenagem que funciona melhor para quem tem dinheiro, conexões e um sobrenome branco. A ex-patroa, Sari Corte Real, foi condenada por abandono de incapaz com resultado morte. Pegou oito anos e seis meses de prisão. A pena foi reduzida para sete. E até hoje, ela segue em liberdade, cursando medicina e sem sequer ter o passaporte apreendido, como foi solicitado judicialmente pelos advogados de Mirtes.
“O que vem acontecendo hoje é um absurdo. O Tribunal de Justiça de Pernambuco está beneficiando a Sari. Está dando a ela o privilégio de seguir a vida como se nada tivesse ocorrido”, lamentou Mirtes, em entrevista à Agência Brasil.
Enquanto isso, Mirtes batalha para que o processo avance. No próximo dia 16 de junho, o Ministério Público de Pernambuco deve se manifestar sobre a responsabilidade penal de Sari. É um passo importante para que o caso prossiga no Tribunal de Justiça do Estado. A assistente de acusação, a advogada Marília Falcão, considera o caso emblemático, apontando que os recursos da defesa têm contribuído para atrasar a decisão. O objetivo da acusação é claro: aumento de pena e execução efetiva. Mas o ritmo lento e condescendente da Justiça não favorece a responsabilização de Sari.
E não é só no campo criminal que os entraves aparecem. A indenização trabalhista de R$ 1 milhão, determinada pela Justiça do Trabalho contra Sari e seu marido, o ex-prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, foi suspensa por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O argumento? Um suposto conflito de competência: a alegação da defesa é de que o caso deveria ser julgado pela Justiça comum, não trabalhista.
O ministro Marco Aurélio Belizze, do STJ, decidiu suspender provisoriamente a condenação até que haja decisão final sobre a competência. “A princípio, a competência seria da Justiça comum, motivo pelo qual se mostra prudente o sobrestamento da reclamação trabalhista”, determinou o magistrado, beneficiando mais uma vez a única responsável pela morte do menino.
Mirtes, por sua vez, discorda da suspensão e afirmou que já solicitou análise jurídica para recorrer. Ela não vê conflito de competência e lembra que o filho estava no ambiente de trabalho com o consentimento da empregadora, inclusive sob os cuidados dela, registrou a Agência Brasil.
A defesa de Sari, por sua vez, insiste que tudo não passou de um acidente. O advogado Célio Avelino afirma que trabalha pela absolvição da ex-patroa de Mirtes. “Cada desembargador votou de uma maneira diferente. A gente queria terminar logo esse processo penal. Sari está sofrendo o dano desse processo. Foi um caso fortuito, um acidente, conforme foi verificado pela perícia. Ela chegou a ser acusada até de racismo”, disse ele. Para ele, essa é uma acusação equivocada e infundada, mesmo a mulher tendo colocado o menino no elevador e o deixado sozinho, para ir procurar a mãe, que estava na rua, passeando com um cachorro. Será que se fosse o filho de uma amiga branca, ela teria feito o mesmo?
A morosidade não é técnica. É política. É estrutural. É histórica. Como analisa o professor Hugo Monteiro Ferreira, diretor do Instituto Menino Miguel da UFRPE, se os papéis estivessem trocados, se Mirtes fosse a acusada, ela não estaria livre, muito menos fazendo faculdade. E é por isso que ele e tantos outros insistem em lembrar: não se trata só de Miguel. Trata-se de como o Estado brasileiro lida com raça, classe e justiça.
Mirtes tem consciência disso. Ela viu no Direito um caminho para compreender e enfrentar o sistema que a feriu, não só como mãe, mas como mulher preta, trabalhadora doméstica e cidadã. Seu TCC, que discute o trabalho escravo contemporâneo, é uma denúncia viva das violências invisíveis que atravessam tantas vidas como a sua.
"Eu busco justiça", repete ela, mesmo após cinco anos de espera. A dor permanece, mas também a coragem. “A gente vai seguir lutando, a gente não vai desistir, pode demorar o tempo que for, mas a gente vai continuar batalhando. Mais cedo ou mais tarde ela vai ter que pagar”, afirmou Mirtes.
Menino Miguel Otávio (Arte: Agência Brasil)
Mirtes Renata Santana, mãe de Miguel Otávio (Foto: Reprodução)
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