Para enfrentar esse cenário, o governo federal lançou a Campanha Nacional pelo Trabalho Doméstico Decente - Foto: Divulgação
No Dia do Trabalhador, celebrado em 1º de maio em memória da greve geral de 1886 em Chicago por melhores condições de trabalho, o Brasil se vê diante de um paradoxo cruel. Enquanto muitos comemoram direitos conquistados — jornada de oito horas, carteira assinada, férias e aposentadoria — milhões de trabalhadoras domésticas, em sua maioria mulheres pretas e pobres, ainda vivem à margem dessas garantias. Em pleno 2025, histórias de trabalho análogo à escravidão seguem emergindo, escancarando feridas coloniais que nunca cicatrizaram.
Apesar de avanços legais, como a promulgação da Lei 12.009 em maio de 2024, que ratificou a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalho decente para trabalhadores domésticos, a exploração dentro dos lares continua sendo uma realidade brutal. Mulheres continuam sendo mantidas por décadas em serviços sem salário, sem descanso e sem autonomia — numa espécie de escravidão silenciosa, muitas vezes legitimada pela cultura do "favor" e da "família de criação". Para elas, até a escala 6X1 seria um grande avanço.
Casos emblemáticos de 2024 e 2025
Em julho de 2024, uma mulher de 59 anos foi resgatada no Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro, após trabalhar desde os 13 anos para a mesma família, sem salário, sem folgas, e sempre à disposição dos patrões. O caso chocou pela longevidade da exploração e culminou na condenação dos empregadores ao pagamento de R$ 763.508,60 em indenizações e direitos trabalhistas. A vítima precisou de acompanhamento psicológico ao ser resgatada.
Em dezembro do mesmo ano, em Além Paraíba (MG), uma mulher foi resgatada após quase 30 anos trabalhando em condições degradantes. Ela havia começado como doméstica em 1996. Sua carteira foi assinada apenas em 2009, mas em 2015 foi “desligada” formalmente — embora tenha continuado a trabalhar sem salário, sem folgas e com jornadas exaustivas.
Outro caso emblemático ocorreu em agosto de 2024, em Santa Rosa do Viterbo (SP), onde uma mulher de 51 anos foi resgatada após quatro décadas de trabalho forçado. Adotada informalmente por um casal aos 11 anos, ela foi submetida a uma vida de trabalho doméstico sem salário. A mulher não tinha liberdade para sair de casa e recebia, como pagamento, apenas "um dinheirinho para comprar balas".
Em abril de 2024, uma idosa de 62 anos foi resgatada da zona oeste do Rio de Janeiro. Ela havia passado 15 anos realizando tarefas domésticas sem folgas, férias ou salário regular. A casa onde vivia com os patrões funcionava como uma prisão silenciosa, com a vítima privada de contatos sociais e até mesmo de autonomia básica.
Mais recentemente, em março de 2025, o caso que provocou forte repercussão nacional envolveu um magistrado de Santa Catarina. A empregada doméstica que trabalhava para ele foi resgatada após denúncias de que vivia em condições análogas à escravidão, sem salário, sem registro formal e com restrições de liberdade. O caso está em investigação pelo Ministério Público do Trabalho e gerou um debate sobre os privilégios estruturais que dificultam a responsabilização dos autores quando pertencem às elites.
A quem o progresso ainda não alcançou
Segundo Carla Galvão de Souza, auditora fiscal do trabalho e coordenadora Nacional de Fiscalização do Trabalho Doméstico e de Cuidados, ainda há cerca de 5,8 milhões de trabalhadores domésticos no país. Desse total, 90% são mulheres, a maioria negras e pardas, entre 40 e 60 anos. Em 76% dos casos, elas trabalham na informalidade — sem registro na carteira, sem acesso à previdência e sem os direitos garantidos pela Constituição.
"O trabalho doméstico no Brasil carrega heranças da escravidão. E isso se manifesta não apenas nas condições de trabalho, mas na maneira como a sociedade encara essas mulheres: como 'parte da família', desde que elas não peçam salário ou direitos", avalia Galvão.
O Ministério do Trabalho e Emprego alerta que, além da informalidade, há aumento nas denúncias relacionadas a abuso psicológico, cárcere privado, retenção de documentos e restrição de liberdade. O resgate dessas mulheres exige operações interinstitucionais, acolhimento social e, muitas vezes, reconstrução da identidade pessoal de quem passou décadas invisível.
Uma campanha por dignidade
Para enfrentar esse cenário, o governo federal lançou a Campanha Nacional pelo Trabalho Doméstico Decente, com o objetivo de sensibilizar a sociedade, ampliar a fiscalização e promover o diálogo com empregadores e organizações da categoria. A campanha também se alinha às metas da Agenda 2030 da ONU, que prevê erradicar o trabalho análogo à escravidão até o fim da década.
A campanha foca em três pilares: valorização, formalização e fiscalização. As ações envolvem distribuição de materiais educativos, fiscalização ativa e articulação com sindicatos, associações e conselhos de direitos humanos.
Como denunciar
Casos de exploração no trabalho doméstico podem ser denunciados anonimamente por meio do Sistema Ipê, do Ministério do Trabalho e Emprego, acessível pelo link (https://ipe.sit.trabalho.gov.br). Também é possível denunciar pelo Disque 100, canal do Ministério dos Direitos Humanos.
No Dia do Trabalhador, enquanto celebramos as conquistas históricas da classe trabalhadora, é urgente lembrar de quem ainda espera por justiça. O Brasil precisa romper, de forma definitiva, com sua herança escravocrata. E isso começa dentro de casa.
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