O ex-diretor do FBI (polícia federal americana) James Comey, demitido há um mês por Donald Trump, disse ontem a senadores que o presidente mentiu ao argumentar que o FBI estava em desordem quando o demitiu e que o governo decidiu difamá-lo.
“A Casa Branca optou por me difamar e, mais ainda, o FBI. Isso foi mentira, pura e simples”, disse o ex-diretor, durante audiência que durou 2h30 no Comitê de Inteligência do Senado.
Comey disse que se sentiu confuso ao saber, pela televisão, que Trump o demitiu por causa da investigação russa, já que o presidente americano teria elogiado e garantido a ele que seu trabalho estava indo bem. “Entendo que eu poderia ter sido demitido pelo presidente por qualquer razão ou razão nenhuma. A mudança de explicações me confundiu e cada vez mais me preocupou. Ele (Trump) repetidamente disse que eu estava fazendo um bom trabalho”, afirmou Comey, sustentando que Trump disse que queria que ele ficasse e continuasse trabalhando.
O fato de um presidente mentir nos EUA é grave e pode gerar um processo de impeachment. Foi com base em mentiras que os republicanos pediram o impeachment do ex-presidente Bill Clinton. Mas a acusação mais forte que Comey poderia fazer a Trump é sobre obstrução de Justiça, mas ele afirmou que não lhe cabe dizer isso.
Segundo o ex-diretor, Trump não sugeriu que ele interrompesse o inquérito sobre possível conspiração entre integrantes de sua campanha e a Rússia para interferir nas eleições de 2016 com o objetivo de favorecê-lo. Mesmo assim afirmou à comissão que não tem dúvidas da tentativa de interferência da Rússia nas eleições.
Comey disse ainda ter registrado notas dos nove encontros que manteve com Trump neste ano porque “possivelmente o presidente mentiria sobre eles depois”.
Questionado sobre possíveis gravações que Trump tenha sobre as reuniões, como o presidente alertou há algumas semanas no Twitter, Comey disse: “Deus, espero que elas existam. Aí não teremos apenas a minha versão e a dele”.
Comey declarou que o presidente não estava sob investigação no momento em que ele foi demitido da chefia do FBI, no dia 9 de maio.
Segundo o relato do ex-diretor, Trump apresentou a ele três pedidos: lealdade, o abandono da investigação sobre Flynn (o ex-conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn) e a declaração pública de que o presidente não estava sendo investigado.
“Ele descreveu a investigação da Rússia como ‘uma nuvem’ que estava prejudicando sua habilidade para atuar em favor do país”, escreveu o ex-diretor do FBI em declaração escrita entregue ao comitê anteontem. “Ele pediu o que eu poderia fazer para ‘dissipar a nuvem.’” Em seu depoimento, Comey disse ter entendido que “nuvem” se referia a toda a investigação sobre a Rússia, mas que o pedido de Trump tratava especificamente da declaração de que ele não era investigado.
Objetivo
O principal objetivo dos parlamentares era definir se o comportamento do presidente pode ser caracterizado como obstrução de Justiça ou abuso de poder. Além do Congresso, essas questões estão sendo investigadas pelo procurador especial Robert Mueller, indicado para conduzir o caso sobre a suspeita de conspiração entre a campanha de Trump e autoridades russas.
O ex-diretor do FBI disse que entregou a Mueller o original das notas que escreveu depois de cada conversa que teve com Trump. Foram três encontros pessoais e a sós e seis conversas telefônicas.
Com 30 anos no Departamento de Justiça e no FBI, ele disse nunca ter visto comportamento igual ao de Trump em outro presidente. Comey, que não gravou conversas com o ex-presidente Barack Obama, usou expressões como “impróprio”, “constrangedor” e “preocupante” para se referir a suas interações com o presidente. Depois do depoimento, o ex-diretor do FBI terá um encontro fechado com os integrantes do Comitê de Inteligência do Senado.
Advogado nega acusações; Trump não comenta
O advogado pessoal do presidente dos EUA, Donald Trump, rechaçou as acusações feitas ontem pelo ex-diretor do FBI e sugeriu que James Comey poderia ser investigado por vazar para a imprensa um memorando interno de uma conversa na Casa Branca.
O presidente “nunca disse sr. Comey ‘espero lealdade’ em forma ou substância”, afirmou Mark Kasowitz, negando a acusação-chave feita pelo diretor demitido do FBI. Kasowitz também sugeriu que Comey poderia ser processado. “Hoje, o sr. Comey admitiu que vazou a amigos supostos memorandos dessas conversas privilegiadas, uma das quais declarou que era confidencial”. “Vamos deixar para as autoridades competentes determinar se esses vazamentos devem ser investigados juntamente com todos os outros que já estão sob investigação”, disse ele, em nota.
Em discurso feito ontem, Donald Trump evitou responder diretamente às acusações feitas pelo ex-diretor do FBI, mas buscou unir seus seguidores com uma mensagem desafiadora: “Vamos lutar e vencer”, disse Trump, dirigindo-se a seus simpatizantes. Sem fazer alusão explícita ao depoimento de Comey, o presidente prometeu combater seus inimigos e repudiar as tentativas de derrubá-lo. “Eles não vão nos desviar desta causa justa para tentar deter todos vocês”, disse Trump em evento da Coalizão Fé e Liberdade em Washington. “Sabemos lutar melhor do que ninguém e nunca vamos desistir”.
Americanos lotam bares na capital
Centenas de pessoas lotaram alguns dos bares da cidade de Washington ontem, para assistir à audiência do ex-diretor do FBI James Comey, no Senado, como se o depoimento fosse uma final de uma competição esportiva. Em um ambiente similar ao Super Bowl, a decisão da NFL (liga de futebol americana), os moradores da capital foram até os bares para ouvir da boca de Comey os motivos de sua demissão e os detalhes das ações russas para influenciar nas eleições de novembro, em suposta parceria com a equipe de campanha de Trump.
Esse tipo de “festa” é tradicional em momentos políticos importantes, como os debates de campanha presidencial e a noite de apuração dos votos. Os bares mudaram dos canais esportivos para as emissoras de notícia, que transmitiram ao vivo o depoimento do ex-diretor do FBI à Comissão de Inteligência do Senado.
Eric Heidenberger, dono do Shaw’s Tavern, um bar bastante famoso de um bairro próximo do Capitólio, onde ocorreu a audiência, afirmou à agência EFE que esperava mais movimento do que um dia comum, mas não as filas que se formaram na calçada. “Isso só pode ser comparado a um evento esportivo mundial, uma final, que atrai muita gente. Nunca vimos tanta gente como hoje.”
O ativista político Eric Sánchez atribuiu a quantidade de curiosos às decisões de Trump. “Elas não têm nenhum sentido e são muito suspeitas”, disse. “Viemos porque queremos escutar explicações. Há muita necessidade de saber a verdade sobre o que ocorreu na Casa Branca. A presença de toda essa gente acentua o ativismo e a mobilização dos últimos meses”, afirmou Sánchez.
Os olhos só saíam da televisão para pegar um dos coquetéis com vodca que estavam em promoção, uma ironia da relação de Trump com a Rússia.
Também houve quem aproveitou a ocasião para ganhar um dinheiro extra, como a artista Patrícia Baca, que ia entre os clientes do bar promovendo suas peças de artesanato.
“Já que se criou toda essa expectativa e temos de sofrer as consequências das loucuras de Trump, aproveito para fazer negócios”, explicou ela.
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