Noveleiro ou não, você com certeza já ouviu (ou leu) comentários sobre o drama vivido pela personagem Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte na novela A Força do Querer, de Glória Perez: a transexualidade. Em tempos de intolerância, mas também da defesa da liberdade de gênero, a atriz , de 24 anos, estreia na TV com o desafio de ser a primeira personagem transexual da telenovela brasileira. Mesmo ainda sem saber o rumo que Ivana vai tomar, os primeiros debates sobre padrões impostos, feminilidade e aceitação têm rendido bons debates na trama. Ivana conversou com o CORREIO sobre a importância de falar sobre esse assunto numa novela. Confira:
Em entrevista, você afirmou que no laboratório que fez para viver Ivana teve contato com vários homens trans. O que te chamou mais a atenção nessas conversas? Houve alguma informação especial que você absorveu para o personagem?
Todas as histórias que eu tive contato foram muito importantes. Desde os fatos da vida, acontecimentos marcantes, até os silêncios e pausas. Uma experiência muitas vezes é contada nas entrelinhas e isso é muito precioso na construção de um personagem, ainda mais no momento da trama em que a Ivana não consegue nominar sua agonia. Eu acredito que as palavras que usamos pra dizer alguma experiência são sempre resultado de um transbordamento de sentimentos e sensações.
O que mais você utilizou para ajudar a interpretar a personagem? Conversou com psicólogos, viu algum filme ou leu algum livro?
Eu vi muitos vídeos de pessoas trans que estão fazendo a transição agora. Eu acompanho alguns canais há um tempo, e eles relatam cada passo dado, cada modificação que eles ou elas sentem, cada detalhe do dia a dia. Eu vi também filmes que tratam do tema, entre eles Meninos Não Choram, Tomboy, e uma série chamada Transparent, muito interessante, além de alguns livros que olham para essa questão em diversas perspectivas. Li sobre as dificuldades que essas pessoas enfrentam quando decidem fazer a transição no que diz respeito a saúde e ao nome social.
Nos últimos capítulos da novela, vimos que Ivana e o namorado Cláudio (Gabriel Stauffer), acabam terminando após uma viagem à Angra. Agora parece que Ivana irá se irritar e ficará magoada com o fato de o ex estar saindo com outra garota. Como você avalia este sentimento? Acha que ela gostava dele?
A Ivana gosta realmente do Claudio, ela se sente bem quando está com ele, os dois fizeram uma amizade muito bonita. A questão da Ivana é antes do Cláudio, é com ela mesma. Acho que ela sente uma inadequação constante, e mesmo apaixonada por alguém as agonias dela não a permitem viver inteiramente essa relação.
Nos próximos capítulos veremos Ivana tentando despertar seu lado feminino, usando lingeries, maquiagem e saltos altos. Como é interpretar uma mulher que se identifica com o gênero masculino, mas está tentando despertar sua feminilidade?
Tem algo na Ivana que me diz respeito que é o fato de não estar enquadrada numa feminilidade imposta pela sociedade, que diz o que é apropriado para uma mulher e o que não é. É claro que a questão da transexualidade toma outros caminhos, a Ivana busca se sentir bem consigo mesma, e é nesse caminho de buscar a si próprio que ele vai finalmente ser quem realmente que é, um homem trans. Me encanta ver um sujeito que se dispõe, não por escolha mas por necessidade, por urgência, a encontrar-se. Todos nós nascemos e somos implicados a vivermos nos padrões estabelecidos, nas normas vigentes, é preciso ter muita coragem para enfrentar esse dilema, é admirável e encantador ver alguém sendo quem realmente é. A Ivana, nesse momento, está tentando se achar, tentando buscar esse feminino que tanto falam.
Na novela vemos cenas de Ivana conversando com sua psicóloga e dizendo como se sente em relação ao seu corpo, entretanto, a questão da transgeneridade ainda não foi descoberta. Você já sabe como será esta descoberta? O que pode nos contar?
Os próximos passos da novela a Gloria Perez é quem sabe (risos). Eu realmente não sei dar nenhuma informação por enquanto. Essa é a mágica da novela. Tudo pode tomar qualquer rumo a qualquer momento.
Você vem de uma trajetória forte no teatro. Como está sendo a experiência em sua primeira novela? Como os dois trabalhos se completam e como se distanciam?
Está sendo um exercício desafiador, estou aprendendo muito, o ritmo da novela é realmente frenético, enquanto no teatro nos debruçamos com mais tempo numa peça, na TV o volume de cenas é muito maior e o tempo muito mais curto. É um exercício de enfrentar, por meses, uma obra aberta em que o personagem passará por muitas transformações. O teatro é mais artesanal, ele proporciona uma experiência diferente da TV. No teatro, a presença do público faz um espetáculo ser diferente do outro a cada dia, na TV temos uma mediação, que é a câmera. Sou louca por cinema e os detalhes que uma câmera é capaz de captar me encanta. A câmera é os olhos do público, a câmera escolhe pra onde temos que olhar, recorta a paisagem e conta uma história junto com o ator. O teatro acontece no momento presente, o ator ali vivendo tudo aquilo com o público, e tudo pode acontecer.
Sua estreia em novela será marcada para sempre como a primeira personagem trans da telenovela brasileira. O que isso representa para você?
Parece clichê, mas é realmente um desafio. Eu estou muito feliz em fazer esse papel. Muitas pessoas assistem novela, tem uma repercussão grande. Acho importante e fico feliz do tema estar numa novela das nove, que tanta gente assiste.
A vida das pessoas trans é delicada e atravessa muitos processos difíceis, incluindo o preconceito e a própria burocracia para realizar a cirurgia. O que você acha do tema? A sociedade está preparada para isso?
Eu acho que as dificuldades que as pessoas trans enfrentam, desde encontrar especialistas na área da saúde, a luta pelo nome social, até o direito de usar o banheiro adequado mostram que nossa sociedade não está preparada. Eu escutei muitos relatos de pessoas trans que buscaram ajuda no sistema público de saúde e claramente não havia um profissional que soubesse tratar da questão de maneira correta, ou a dificuldade está no tempo ou na burocracia para começar o tratamento. A massacrante marginalidade a qual eles e elas são submetidos, sem contar o preconceito diário que essas pessoas enfrentam, quase todo dia tem uma notícia de uma trans ou um trans violentado. Temos que mudar esse quadro urgentemente.
Por que é importante abordar a realidade transgênero na televisão brasileira?
Se pensarmos que já morreram mais de 100 pessoas LGBTs só esse ano e que o Brasil é um dos países mais perigosos para pessoas trans viverem, a importância de tratar disso num veículo que atinge tantas pessoas pode ser esperançoso. É muito interessante levar pra dentro da casa das pessoas esse tema. É uma possibilidade de diálogo, de quebra de preconceitos, espero que a partir da novela as pessoas busquem mais informações, compreendam melhor essa questão. Que nós, enquanto sociedade, possamos apoiar a luta trans, que os direitos sejam assegurados, e que essas pessoas sejam ouvidas e respeitadas.
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